Desafios relacionais: o que o BBB nos ensina sobre como as diferenças podem nos ajudar a crescer

Mesmo que, como eu, você não assista o reality show Big Brother, deve ouvir falar sobre o que está se passando na casa mais vigiada do Brasil pelas redes sociais ou por comentários de quem assiste.

E não sei se você já parou para pensar como as pessoas são selecionadas para o programa e nos roteiros que são escritos para os participantes. Sim, eu sei que muitas pessoas acreditam por ingenuidade que por se tratar de uma vigilância 24h com a visibilidade por pay per view, tudo o que é feito ali dentro é espontâneo.

Não é o que acontece e (quase) tudo dentro de um reality show é roteirizado e editado intencionalmente pelas equipes do programa, visando criar polêmicas e situações de romance, atração ou tensão entre os participantes para garantir mais pontos de audiência. E eles sabem muito bem quais botões apertar e quais cordas puxar para afetar quem assiste. E não têm muita ética com relação a isso, levando em conta que sabem quais os conflitos que, uma vez disparados, irão inflamar grupos específicos que irão trabalhar intensamente na divulgação do programa.

Os participantes obviamente assinam contratos de confidencialidade que os impede de sair da casa revelando esses truques, mas já é sabido do público que eles passam por um treinamento antes de embarcar nessa aventura relacional.

O que tem ficado cada vez mais evidente nas últimas edições do programa são as polêmicas em torno de temas sensíveis como machismo, racismo e intolerância religiosa e como o jogo escancara as diferenças aparentemente inconciliáveis entre pessoas de grupos culturais e socioeconômicos diferentes. O que vemos ali é uma representação das estruturas políticas, sociais e culturais perversas e da opressão de certos grupos sobre outros. Os participantes reproduzem dentro da casa o que aqui fora é prática naturalizada por uma cultura racista, machista e homofóbica e transfóbica.

Por essas e outras que vemos o espaço que o programa tem ocupado nas pautas e redes sociais e como o convívio dos participantes reflete aspectos culturais e identitários e promove o debate sobre as diferenças e como é possível somar e crescer a partir delas. Por outro lado, o jogo também tem fomentado a traumatização tanto dos participantes quanto dos espectadores que se identificam com as situações sofridas por eles. Isso é agravado pela não resolução adequada de conflitos pelo apresentador, pela falta de autocrítica dos participantes que assumem uma vontade de poder se valendo de diferença de gênero, raça e classe social e pelo apoio ou defesa externa de falas preconceituosas ou atitudes violentas.

Mesmo assim é possível extrair lições valiosas das interações diversas entre os participantes e aplicá-las no contexto de nossas próprias relações interpessoais.

No ambiente do Big Brother nós temos pessoas que vem de origens e experiências diferentes em um processo de convívio exacerbado, em confinamento e sem contato exterior, o que intensifica os vínculos, mas amplifica os desconfortos. Esse confinamento e convívio extrapolado geram ainda mais tensões internas e entre os participantes. Muitas pessoas vivenciaram isso durante o período da pandemia, se vendo obrigadas ao convívio excessivo com familiares, parceiros e parceiras.

Guardadas as proporções, os relacionamentos passam por processo semelhante, sejam eles no campo pessoal familiar, afetivo-sexual ou das amizades. Seja em casa, na escola ou no trabalho, em qualquer situação em que duas ou mais pessoas se encontram, há um campo aberto para conexões e conflitos, diálogo ou debates, trocas ou injustiças. Por mais semelhante que as pessoas sejam, ainda assim cada uma guarda sua singularidade formada por sua história única.

Por isso relacionamentos são como laboratórios onde cada pessoa pesquisa sobre si e sobre o outro, tentando fazer ajustes e adaptações para que a química funcione e crie sinergia e, desse modo, se torna uma grande oportunidade de crescimento pessoal.

Há um duplo espelho nas relações: o que reflete e o que projeta e uma hora somos receptores das projeções alheias e em outra enunciadores de nosso desejo sobre o outro.

Um conceito da psicanálise que nos ajuda a entender esse processo é o estádio do espelho de Lacan - o momento em que o bebê vê sua própria imagem refletida: no início há o estranhamento e depois há o reconhecimento do seu próprio reflexo no espelho ou nos outros.

O espelhamento é a identificação com o outro e nos leva a buscar nos relacionar com aqueles que refletem características que estão de acordo com nosso sistema de crenças e valores e/ou imitar seus padrões de comportamento.

A projeção tem diferentes modos de operação: 1. projetamos qualidades que valorizamos ou gostaríamos de ter nos outros e desse modo os alçamos a um patamar especial; 2. projetamos sentimentos não resolvidos e emoções não elaboradas nos outros, o que afeta o modo como nos relacionamos com eles; 3. projetamos desejos, expectativas ou inseguranças nos outros e desse modo nossas relações podem se tornar fontes perenes de frustração e decepção.

O estádio do espelho é um momento constituinte da identidade que influencia o modo como nos relacionamos porque molda a forma como percebemos a nós mesmos e os outros e como achamos que os outros nos percebem. O espelhamento pode impactar quem escolhemos como parceiro na busca de aprovação e reconhecimento e a projeção pode afetar o modo como interpretamos as ações e os comportamentos alheios.

O estádio do espelho é um desdobramento do conceito de narcisismo primário proposto por Freud na formação da personalidade: na fase inicial de seu desenvolvimento, a criança mantém uma relação intensa consigo mesma e ao se identificar com a imagem refletida experimenta uma sensação inicial de unidade e plenitude.

O narcisismo primário se manifesta em nossas relações quando buscamos no outro nossa a satisfação de nossos desejos e necessidades e a validação de quem somos, do nosso comportamento e atitudes. Isso se torna um grande desafio quando não encontramos um equilíbrio saudável entre a necessidade do reconhecimento do self e a consideração pelas necessidades e desejos do outro.

Quando reconhecemos a alteridade, ou seja, a existência e experiências do outro como diferentes das nossas, a separação entre o “eu” e o “outro”, isso abre espaço para o entendimento e respeito mútuo. A partir disso, as relações deixam de ser receptáculos da nossa falta investida uns nos outros e se tornam fontes de troca saudável e equilibrada.

O reconhecimento desse processo e a consciência da alteridade, o respeito à história, experiências e perspectivas do outro nos permite construir conexões mais conscientes e relações sustentáveis no jogo ou na vida.

Abraços de elevar!