O que podemos aprender com o Patinho Feio

O patinho feio é um conto de fadas que tem sido mal interpretado, mas que traz uma jornada de individuação completa.

Contos de fadas são uma transmissão de conhecimentos profundos que se comunicam direto com o inconsciente utilizando símbolos e arquétipos. É importante lermos ou ouvirmos essas histórias com a curiosidade e abertura das crianças, porque nelas estão contidas muitas pistas importantes sobre nós e o mundo. Ao contrário, se fizermos uma leitura apressada, partindo de interpretações racionais, perdemos o melhor delas.

O patinho é considerado feio por ser diferente dos outros patos, mas ele é diferente por ser um cisne no meio de patos. A história não é sobre o seu aspecto físico, mesmo que algumas pessoas se identifiquem com sua trajetória por terem se sentido rejeitadas por sua aparência. O patinho feio é um ser diverso de sua família que o rejeita. Ele sofre agressões e injúrias, mas continua tentando se enquadrar até o momento em que decide seguir sua jornada como um ser proscrito, se lançando ao exílio voluntário.

A história do patinho feio é uma grande inspiração porque trata do processo de individuação que todas as pessoas terão de atravessar. E se individuar é se diferenciar da sua família, se afirmando como pessoa e seguindo sua jornada pessoal.

A família é nossa base, a superfície onde somos inseridos no começo da vida e onde vivenciamos nossas primeiras experiências. Um grupo com o qual nos identificamos e nos misturamos e onde experimentamos projeções e introjeções dos valores e normas, padrões de comportamento e gabaritos a serem seguidos para obtermos aceitação e podermos pertencer.

A família pode ser a pista de decolagem de onde partimos para nossos voos solos, carregando em nossas bagagens provisões que servirão de recursos em nossa jornada. Mas ela pode se tornar uma instituição rígida, uma totalidade que devora as singularidades, uma espécie de areia movediça que quando nos movimentamos, nos sentimos afundar.

Existe uma retroalimentação entre a cultura familiar e a cultura da comunidade da qual esta participa pela ancestralidade, sociedade ou religião. O que é transmitido como certo, como norma e como modelo vai sendo ratificado pelo comportamento de seus membros se estes não os questionam nem se diferenciam.

Não seria mais construtivo que a cada nova geração as regras do jogo fossem modificadas, em uma constante atualização? Não seria esse o desenvolvimento humano desejado?

Já no começo de sua vida, o patinho é perturbado e maltratado por seus irmãos e rejeitado por sua mãe. Na maioria das famílias, ousar ser diferente dos gabaritos dos predecessores ou da sociedade da qual participam pode significar crítica, rejeição e isolamento. Por isso, algumas vezes e por muito tempo, assimilamos as exigências e violentamos nossa própria essência para nos encaixar.

E muitas pessoas se sentem alienígenas em seu próprio meio familiar, quando os gabaritos não comportam sua essência. E, por questão de sobrevivência psíquica, emocional e algumas vezes até mesmo física, essas pessoas têm de se “perder” da família para se encontrar.

Pela lógica do poder, que pode ser o da hierarquia do papel natural (mãe e pai, irmãos mais velhos) ou de outras instâncias (poder financeiro, força física, gênero), se produz todo tipo de violência no campo familiar. A violência tem muitas faces e pode se manifestar como agressão física, abuso psíquico e emocional e mesmo abuso econômico. Episódios de violência física e psicológica entre membros da mesma família são mais comuns do que gostamos de admitir.

Um campo familiar aberto à diferença, que apoia a essência e estimula a livre expressão e criatividade de cada pessoa, facilita o processo de individuação e resulta em um grupo diversificado de pessoas que se unem pelo amor e respeito mútuos em uma troca bonita e profícua.

Mesmo nesse caso, existe uma necessidade de se descolar dele para completar o processo de individuação. O ovo na história representa a semente, o útero, aquilo que precisa ser transformado ou abandonado para que a vida continue. A morte da semente é o nascimento da planta e há um limite no tempo de gestação que separa a vida da morte.

É preciso deixar de ser semente, é preciso sair do útero, é preciso abdicar do ninho e voar. Para amadurecermos, nos realizarmos como pessoas autônomas, é preciso deixarmos o mundo infantil e ir além de nosso núcleo familiar. Somos mais capazes de entender uma situação em sua totalidade, quando nos afastamos dela, não só fisicamente, mas principalmente no aspecto psíquico e emocional.

A partir da rejeição da mãe, o patinho se sente inferior aos demais, sente que não é bom o suficiente e empreende uma busca instintiva por um lugar onde possa se sentir acolhido. Ele inicia sua jornada e segue seu caminho encontrando dificuldades e desafios. Aqui pode-se ver a estrutura da jornada do herói, onde ele sai do mundo comum e parte para uma aventura.

Esta passagem do conto pode ter duas leituras: por um lado se refere a necessidade de se afastar daquilo que nos causa danos e buscar nossa tribo, onde encontramos pessoas que possam acolher quem somos e nos apoiar. E por outro, a necessidade de recolhimento, da escuta de si, do mergulho em nossa própria identidade para descobrir e afirmar as particularidades que nos diferenciam das demais pessoas.

É um encontro consigo para voltar ao encontro com as pessoas com muito mais segurança e autonomia, sendo quem se é. Visitar o mundo interior, descobrir quem o habita verdadeiramente e retornar para o mundo exterior. Eu diria que é o que acontece em um percurso terapêutico, a cada sessão.

Nessa jornada, o patinho vagueia por lugares ruins, bate em portas erradas e tem encontros verdadeiramente desastrosos e a cada um deles, vai tendo um decréscimo de sua energia. Essa parte da história demonstra como podemos nos perder de nós na tentativa de obtermos aceitação ou amor de outras pessoas.

As portas erradas são aquelas que fazem com que voltemos a nos sentir proscritos.

Clarissa Pinkola Estes

No nosso intenso desejo por uma cultura que combine com nossa natureza, seguimos a procura do que precisamos, de pessoas com quem podemos ter afinidades na companhia de quem podemos nos sentir bem. Podemos errar o caminho, nos perder, nos ferir, mas uma voz interna será capaz de nos guiar, se nos dispusermos a ouvi-la.

O momento em que o patinho está congelado representa essa tentativa de congelar os próprios sentimentos desconfortáveis, aquele estado de não querer se mexer para não piorar, e uma atitude de paralisia que impede qualquer movimento ou mudança. Esse é um mecanismo de proteção bem arquitetado, mas que acaba por prejudicar a nossa criatividade e comprometer a livre expressão da nossa essência.

Uma atitude gélida apagará o fogo criativo e inibirá a função criativa. O gelo precisa ser quebrado, e a alma retirada do congelamento.

Ao nos percebermos vítimas de uma situação, podemos nos abandonar em sentimentos de injustiça, intenso sofrimento, tristeza profunda e autopiedade. Esses são aspectos da nossa sombra, e é preciso encará-la, trazê-la do fundo, lançar luz sobre ela e integrá-la para poder disponibilizar os recursos que ela tem para nos oferecer. Precisamos continuar em movimento para que aquilo que estamos procurando nos encontre.

A história do patinho feio é uma jornada de autodescoberta. Ele só percebe que foi maltratado não por ser feio, desajeitado e inadequado, mas por ser diferente dos outros, quando já deixou o lar há muito tempo, enfrentou dezenas de desafios e interagiu com muitos outros seres. No final da jornada, ele reencontra os cisnes e se descobre um cisne (isso é uma metáfora para o processo de individuação).

Esse conto de fadas tem uma mensagem inequívoca: se você se sente como um pato em meio a cisnes, siga seu caminho, persista a despeito dos desafios, resista diante das dificuldades, consista em seu desejo de encontrar sua turma, confie em sua intuição e permaneça em movimento.

E, quanto a descobrir sua verdadeira forma e encontrar o lar da sua alma, a sensação de potência será tão boa que você saberá.