Existir é resistir

Este é o primeiro texto do ano. Sim, eu sei que já entramos na segunda quinzena de janeiro e que somente agora estou postando texto no blog. E me lembro de ter dito que teríamos postagens frequentes, o que não tem acontecido. Mas quer saber? Está tudo bem também.

Uma das minhas resoluções de final de ano foi “pegar leve” comigo mesma, me poupar um pouco mais do que fiz em 2020. A quarentena reforçou a necessidade de aprendermos a respeitar nossos próprios limites e sinalizarmos para as pessoas sobre eles de forma clara.

Em uma situação em que a área profissional invadiu o espaço pessoal, onde o público e privado se misturaram além do limite saudável, nós assistimos cenas engraçadas, mas constrangedoras e presenciamos a saúde mental das pessoas deteriorando, particularmente dos grupos mais vulneráveis.

E quando se trata de situações coletivas dolorosas, as mulheres seguem sendo as principais vítimas. Não seria diferente agora, em uma situação de confinamento em que toda a família divide o mesmo ambiente, em um quadro de instabilidade econômica e de risco à saúde de todes. Lidar todos os dias com o espectro da iminência da morte, sendo esteio e apoio emocional dos outros, somada às já inúmeras responsabilidades que tem de equilibrar entre tarefas domésticas e profissionais, cuidados com os filhos e com os idosos, tudo isso reunido em um só contexto. A fórmula perfeita para o aumento de estresse a níveis insuportáveis.

Não bastasse isso, ainda deparamos com o aumento da violência doméstica e do número de casos públicos de abusos contra mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+ e povos originais. Um desrespeito a vida e a diversidade que está tão presente na natureza que nos acolhe e alimenta.

Quem não se choca com isso e com o cenário devastador em que o país se encontra em pleno século XXI, é porque já perdeu sua alma.

Mulheres estão desde sempre na base da construção social, até porque sem “pessoas com útero" para gerar bebês, não haveria vida humana. Faz muito mais sentido uma cultura que endeusa mulheres e que as compara com seres divinos, do que outra que as objetualiza, rebaixa e as trata como espólio social que pode, inclusive, sofrer violência e descarte. É mais lógica uma cultura que considera a diversidade como diferenciação ideal e não como algo a ser combatido.

Estamos no mês do orgulho trans e eu acredito na transrevolução como uma sequência natural da revolução feminista. Confio que a libertação das corpas do domínio da moral e da hegemonia de um pensamento não inclusivo vai permitir que olhemos para a natureza de forma mais generosa e humilde. Afinal, somos parte dela e não donos delas, seus senhores absolutos. Como humanos, onde estávamos com a cabeça quando pensamos que seríamos capazes de submete-la a nossa necessidade egocêntrica, domina-la e explora-la sem sofrermos consequências? Reconhecer nossa falta de autonomia enquanto espécie com relação ao meio e nossa impotência diante de fenômenos naturais pode ser um primeiro passo de transformação. Podemos estender isso a soberba que certos seres ostentam querendo impor seus modos de vida aos outros, desde a religião, passando pela identidade e até a sexualidade, querem que o mundo seja um reflexo de si.

O tipo de pensamento violento e exploratório que dominou séculos de existência humana e que está nos fazendo caminhar a passos largos para o abismo tem de morrer para germinar vida nova. Uma vida diversa e colaborativa, como demonstram os ambientes naturais e selvagens, que ainda não tiveram a intervenção do homem. Um mundo onde haja literalmente espaço para todes e onde a diferença soma e não subtrai vidas.

Essa organização social e política que pretende sujeitar corpas que não cabem em uma normatividade, onde o parâmetro exclui a maioria das pessoas porque se baseia em um modelo estreito (neste caso homens brancos cis), que parece querer esgotar toda a potência de vida e não promover seu desenvolvimento, está em vias de acabar.

Sempre que há o prenúncio de uma mudança radical com qualidades de transformação profunda, onde nada ficará no lugar e tudo que conhecemos está fadado ao desaparecimento, é possível perceber a presença de forças reativas. Eu vejo a manifestação do pensamento fundamentalista e retrógrado de extrema direita e o recrudescimento da violência contra as minorias como o estertor de algo que está prestes a morrer.

Como diz na música: apesar de você amanhã há de ser outro dia. Porque somos como águas, crescemos quando nos juntamos. Então, juntes, certamente estamos construindo um novo paradigma político, social, econômico, artístico e espiritual onde a diversidade imperará sobre qualquer forma de redução de nossa existência. Somos resistência ao que ameaça nossa existência.