Do que estamos fugindo, afinal?

Precisamos rever nossa relação com o celular e com tudo que ele carrega. Você não imagina sua vida sem ele, sem a Internet, as redes sociais e os serviços de streaming?

Está tudo bem, eu também não. Adoro ter agenda, aplicativos de gerenciamento de tempo, editores de vídeos, plataforma de música e podcasts, acessar notícias, aplicativos de banco e meus lindos contatos, tudo isso em um único lugar. Tenho apreciado pagar contas com um simples toque, adoro minhas conversas com amigos e amigas nas horas livres, ouvir os podcasts (o que as vezes os áudios que enviamos se tornam), poder falar com minha mãe e minha filha que estão longe e assistir as lives dela no Twitch.

Eu tenho me nutrido disso tudo e dos cursos que faço, das oficinas que participo como a Rachadura do Sesc, tenho me alimentado das atualizações diárias do Museu do Status do Hermógenes. E esses dois últimos estão de forma muito inteligente subvertendo a lógica desses sistemas, criando fissuras e lançando água fresca pelas frestas.

Veja, eu sou uma entusiasta da Internet, ela me trouxe uma rede de afetos, me conecta com meus amigos e minhas amigas, minha família e com meus interesses. Todos esses sistemas facilitam nossas vidas, nos aproximam, permitem que criemos e nos expressemos. Eles deveriam estar aí para nos servir, para fazermos uso deles. Mas não é o que acontece.

São sistemas desenvolvidos para fazer você passar o maior tempo possível em conexão com eles e isso produz uma desconexão de outras coisas essenciais: as suas relações presenciais, sua relação consigo, com seu cotidiano, com seu corpo, com a natureza e, muitas vezes, até com o que você come, com sua beleza, singularidade e criatividade. Eles estão fazendo uso de você e estão minerando o seu tempo.

Entenda, não estou julgando você. Não há nenhum problema em jogar um joguinho para estimular o raciocínio e a memória ou se distrair, assistir a uma série para relaxar após um dia estressante ou rir de bobagens e memes. Tem momentos que a gente não quer pensar em nada mesmo, só quer desopilar o fígado e absorver algo leve e ir dormir. E está tudo bem.

Não há nenhum problema de você zapear pelo feed do Instagram e do Pinterest, ter ideias, se inspirar ou se informar pela Internet.

O problema é quando você percebe que seu desejo foi capturado, quando você começa a comparar sua vida com a vida das outras pessoas, seu corpo com o corpo das outras, começa a se incomodar com coisas que antes não eram um problema como o formato de sua sobrancelha ou a ruga de expressão entre seus olhos ou a decoração da sua casa. Quando começa a sentir uma necessidade que antes não havia e uma sensação de insuficiência, de não ser boa o bastante, de ter uma vida ordinária.

Não estou falando tampouco contra o consumo de coisas, de você querer ter o melhor para si, coisas que elevam tua vida, que facilitam sua rotina, que embelezam seu cotidiano. O consumo também faz o dinheiro circular, gera empregos, faz a economia do país girar, quando tem alguém competente e bem intencionado a gerenciando.

Então qual é o problema? O problema é quando você entra em uma roda viva de comportamentos sobre os quais você não tem nenhum controle, quando sente que perdeu sua autonomia para escolher e se sente impotente diante de sistemas que foram programados para gerar sensações e desejos em você.

A questão é quando você percebe, como me disse uma amiga esses dias, que se deixou capturar por uma lógica de que precisa trabalhar mais para facilitar sua rotina, como para ter alguém que cuide de sua casa, ter dinheiro suficiente para consumir certas coisas das quais não precisa realmente, adquirir certos bens que não se alinham com seus valores. E quando você se dá conta de que está sem tempo, sem energia e sem tesão de curtir a casa, os bens e até mesmo a pessoa que está do seu lado pelo cansaço extremo produzido pelo excesso de trabalho.

Veja, o problema não é o neuromarketing querer prever seus comportamentos de consumo para lhe oferecer produtos adequados as suas necessidades e lhe oferecer boas entregas, mas o uso que se faz dele.

A questão é a captura e o aprisionamento de seres que perdem a autonomia para decidir onde vão aplicar suas energias e seu tempo e investir sua potência e seus afetos. A questão são seus afetos, desejo e potência capturados por uma máquina de gerar lucros sem que você se dê conta ou somente perceba quando os prejuízos já são enormes para seu corpo, sua mente e suas economias.

O enorme problema que enfrenta é de perder a noção de si e a conexão com sua realidade, perder o autocontrole e sua capacidade de autorregulação e se deixar escravizar por esses sistemas que deveriam estar aí para servir você, facilitar sua vida, proporcionar lazer e lhe dar prazer.

A questão é você passar parte do seu tempo nos joguinhos de celular, maratonar todas as séries da Netflix, rolar o feed por horas intermináveis e se sentir um lixo depois, como se tivesse perdendo sua vida.

O problema é sua sensação de impotência, de inadequação, a culpa que sente, a raiva de si e, acima de tudo, a fuga.

O pior é já não ser capaz de identificar do que você está fugindo, o que você não quer ver, ouvir ou sentir, com o que você não quer conviver.

A questão é não saber o porquê dessa necessidade de se entorpecer.

Talvez possamos refletir profundamente sobre isso, nos reconciliar com o celular e os serviços oferecidos por eles, nos reconectar com nossa realidade interna e começar a estimular nossa criatividade e exercer nossa autonomia para usar as coisas que estão aí por nós de um modo mais saudável e sustentável para a nossa própria ecologia.

Usa-los para produzir novas realidades e instaurar novos mundos a exemplos dos artistas e performers brilhantes que tenho encontrado no meu percurso.