35ª Bienal - Coreografar o impossível cartografando possibilidades

Era o penúltimo dia da 35ª Bienal quando encontrei meu amigo Fernando Hermógenes para visitá-la, após uma década e meia sem ir à mais importante mostra de artes do Brasil.

Sim, a última edição da Bienal que visitei foi a 28ª. “Em Vivo Contato”, também conhecida como “Bienal do Vazio”, quando participei da performance dirigida pelo coreógrafo Ivaldo Bertazzo, com o rosto e corpo pintados e tocando um instrumento de sucata produzido pelo GEM – Grupo Experimental de Música, marchando e “invadindo” o primeiro andar do edifício, o que resultou em uma grande e bela festa comunal com o grupo tocando para os espectadores no espaço do andar térreo do Pavilhão.

É importante salientar que essa “ação de ocupação” estava institucionalizada e pautada no “nome” do coreógrafo, não sendo espontânea e sim ensaiada, mesmo que brevemente, unindo seu grupo Cidadãos Dançantes, professores da sua Escola do Movimento, bailarinos de sua companhia e os integrantes do GEM.

Faço essa digressão porque essa edição da Bienal foi considerada um marco na história das bienais por ter sido atravessada por questões políticas, cortes de orçamento e lutas de poder na instituição que resultou na crise estética e dificuldade da curadoria de ocupar todo o espaço e em uma resposta superficial de simplesmente manter o espaço vazio. E por ter sofrido uma ação de 40 pichadores no dia da abertura, movidos pela ambiguidade do espaço vazio que implícita ou explicitamente convidava qualquer manifestação popular. O grupo invadiu o pavilhão e pichou parte do segundo andar e essa ação resultou na prisão arbitrária de uma das jovens que participava do movimento.

Nessa mesma edição, me manifestei ao lado de minha amiga, colega de ateliê e então estudante de crítica Luiza de Moura e gravei sua performance caminhando e ocupando com seu corpo esse espaço vazio. Esse vídeo fazia parte do meu último projeto como artista produtora, o Com.E.Nos – Comunicação entre Nós, que consistia em dar instruções às pessoas para visitar exposições de arte e gravá-las falando sobre sua experiência ou produzindo algo a partir dela.

Diante de tantas contradições, entraves políticos, econômicos e afetivos que atravessavam o fazer artístico, ali começava a se encerrar minha produção na arte. Nessa época, após cerca de cinco anos de dedicação integral ao fazer artístico e uma breve pesquisa em performance e microperformance, desisti da produção artística e comecei a trazer a arte para o cotidiano e para a prática clínica, já que pensava no conceito ampliado de arte desde o início da minha pesquisa. E a questão central do meu projeto era: como viver a vida como obra de arte.

Pela dificuldade de inserção, mesmo com um investimento substancial em tempo, energia e recursos financeiros, fui perdendo gradualmente o interesse pela produção artística, pelas instituições e pelo chamado “mercado de arte”, que reproduz a lógica capitalista e as práticas colonizadoras. E segui investigando como seria levar a termo o conceito de construir a própria vida como obra de arte.

Após essa lacuna de mais de uma década, não poderia ter escolhido melhor a edição da Bienal para o retorno. Afinal, esse ano foi um divisor de águas na história das bienais, a começar pela curadoria da mostra, que trouxe uma perspectiva diversificada e inclusiva com a descentralização e o afastamento das normas tradicionais da instituição. Sem a figura de um curador-chefe, essa edição dissolveu as estruturas hierárquicas tradicionais, ergueu a voz das diásporas e povos originários trazendo artistas de vários territórios e com os mais diversos modos de produção artística e criou uma edição sem categorias limitadoras, alinhada às grandes questões emergentes no mundo.

A equipe de curadores, em sua maioria pessoas negras, compuseram um grupo especial: Diane Lima, curadora independente e pesquisadora que veio representando o feminismo negro, a artista portuguesa interdisciplinar e internacional Grada Kilomba, o antropólogo e crítico de arte Hélio Menezes, ex-curador do Centro Cultural São Paulo e o historiador espanhol Manuel Borja-Villel, ex-diretor do Museo Reina Sofia.

A proposta dessa edição era provocar a reflexão de como a impossibilidade reflete na produção artística e como, através das coreografias do impossível, podemos criar estratégias e construir dispositivos para desafiar o impossível e plasmar possibilidades de fazer arte e de estar no mundo.

Um mundo que se encontra diante de guerra, genocídio, urgência climática, disputas políticas e ideológicas e uma crise estética sem precedentes. Uma época marcada por um profundo retrocesso no nível de consciência das pessoas e pelo retorno de um pensamento conservador e fundamentalista que tem trazido efeitos perversos para as minorias. E diante disso, há uma emergência nos debates e ações cada vez mais urgentes para lidar com o planeta, a única casa que podemos habitar, mas que estamos destruindo de modo acelerado.

Como podemos habitar o mundo de modos menos violentos? Como buscar na sabedoria ancestral modos possíveis de viver nesse mundo e uns com os outros? Como segurar o céu para que ele não desabe sobre nossas cabeças? Será que a arte pode nos trazer respostas e propostas para adiar o fim do mundo? É possível criar linhas de fuga da captura capitalista e colonizadora pela arte e o fazer artístico?

Essas são questões sempre presentes em minhas conversas com artistas, particularmente nos meus diálogos cotidianos com o performer e artista educador Fernando Hermógenes. E decerto eu não poderia ter escolhido melhor companhia para esse retorno à Bienal do que ele, que é em si mesmo um acontecimento, um museu vivo, um campo de encontros potentes, uma festa. E não poderia fazê-lo de outro modo senão ativando o parangolé rosa de tecido adamascado que simula a pele de uma cobra, que ele havia me presenteado em uma visita no Rio, em 2021. Hermógenes leva à termo transformar a vida em obra de arte e a premissa de sua obra é levar alegria às pessoas.

Então lá estava eu, que havia desistido de uma relação direta com a arte, em plena Bienal, ativando um parangolé de Fernando Hermógenes e performando uma presença artística ao lado de um dos performers mais amados no Brasil. Por isso afirmo que a arte tem uma força gravitacional que sempre me puxa de volta e me captura. Atualmente a arte relacional fez mais sentido na presença de Hermógenes, o artista nômade que viaja o mundo distribuindo afeto e trazendo alegria para os corações inquietos e os corpos cansados.

Meu modo de pensar é um fazer coletivo

Minha curta trajetória na arte foi desde a reflexão sobre os papéis sociais da mulher expressados em autorretratos na Série Descansos, passando por uma crítica ao solipsismo na instalação interativa Solilóquio e entrando em sua fase mais relacional no convite ao diálogo e ao fazer junto das vídeos-performances Com.E.Nos. Se há trinta anos venho buscando me desprender do tipo de pensamento individualista, autocentrado, limitante e limitador de alguns modos de expressão na arte e há 15 venho me desconectando de um fazer artístico para produzir objetos estéticos e toda uma vida pensando e debatendo questões de raça, gênero, sexualidade, apagamentos culturais, anticapitalismo e decolonialidade, não poderia deixar de ir à edição da Bienal que melhor celebrou essas discussões. Não tive tempo para ver muito, mas o pouco que eu pude ver me impactou de um modo muito potente.

A começar pelo fato de que, diferente das edições anteriores, a cozinha foi destinada não aos artistas, mas à Cozinha Ocupação 9 de julho, do Movimento Sem Teto do Centro, organização que oferece alimentos saudáveis a preços acessíveis. Tive a oportunidade de experimentar a deliciosa cozinha com milho crioulo da chef Jerá Guarani e me deleitar com canjica, feijão e abóbora de um modo que nunca havia provado. Cozinha como experiência estética, afetiva, sensorial, política e coletiva.

O milho também estava presente na obra Kwema, do artista amazonense Denilson Baniwa, uma grande pedra no centro de um círculo de milho, instalada na área externa do Pavilhão e que, à medida que as plantas crescem, forma uma espécie de espaço de respiro e isolamento do entorno. A proposta dessa obra é que quando for possível a colheita do milho, ele possa ser servido aos visitantes. Um pensamento sobre o tempo das coisas e de como a arte pode atuar como partilha, nutrição e ação comunal.

Uma das obras que mais me afetou foi a “A Floresta de Infinitos” dos artistas baianos Ayrson Heráclito e Tiganá Santana, uma instalação imersiva e sensorial, um percurso que simula uma caminhada na floresta, atacando os variados sentidos do corpo e o atravessando com as presenças ausentes de personagens na história da luta pelos direitos dos povo negro e indígena e pela defesa da terra livre e do ambiente sustentado por políticas de preservação e inclusão, como Chico Mendes, Mãe Stela de Oxossi, Dom Philips e Bruno Pereira.

Em um experimento interessante, dentro de uma visão expandida de pintura, caminhei descalça sobre a obra “Habitar el Color” do artista Carlos Bunga, junto com as crianças. Trata-se de um site specific que transcende a apreciação estética da pintura e nos convida a mergulhar nela, caminhar sobre, sentir a cor com os pés essa explosão sensorial. Sua obra desafia a ideia da pintura como algo a ser conservado, eterno e imutável e traz seu caráter efêmero e de apodrecimento como nossa própria carne, como um lembrete da impermanência e necessidade de estar na presença. No sentido oposto, outra obra que visitei foi o Archivo de la Memoria Trans (AMT), de María Belén Correa e Claudia Pía Baudracco, visa resgatar e proteger a memória de pessoas trans que sofrem negligência, violência e apagamento da sociedade em um mural com mais de 3 mil peças entre fotos pessoais, imagens de momentos íntimos, retratos do cotidiano e recortes de jornais.

Mas o que se transfigurou em verdadeiro rito de passagem para mim foi a obra Sumidouro n. 2 – Diáspora fantasma de Laís Machado e Diego Araúja, a instalação performer como defendem os artistas, que se apoia no cântico “quero me acabar no sumidô” entoado em diversos territórios brasileiros onde se encontravam pessoas escravizadas. Esse desaparecimento como um modo de viver outra realidade que não da tortura e sofrimento da escravidão. Sentei-me ao lado de Hermógenes, aguardando um certo desfecho, observando as presenças das pessoas que caminhavam ao longo dos corredores, seus corpos surgindo e desaparecendo por entre as enormes cortinas de palha, sentindo o cheiro característico dessas e sendo atravessada pelos sons, com lágrimas nos olhos. A sensação pungente de que não há reparação possível para certos eventos da história onde me sento de modo incômodo em uma cadeira de privilégio branco, ao lado de meu amigo cujo corpo negro é cotidianamente atravessado pela violência colonial. A urgência da decolonialidade e da prática do amor não conciliatório atravessando meu corpo e tomando minha mente e alma.

Encerrei essa experiência do retorno à Bienal, assistindo ao rito místico de Deize, a Deosa Travesti, com a apresentação How deep is the Ocean da artista multimídia Ventura Profana que junto com a incrível performance em dança da artista Pedra Silva e música de uma banda formada por musicistas maravilhoses, fez história. Fomos catapultadas para dentro de um universo onde arte se transforma em profecia gloriosa e jornada espiritual. Levadas pela mão da pastora, que em seu ritual, ao mesmo tempo que critica os dogmas religiosos, retorce os modos tradicionais ritualísticos que conhece a partir de sua experiência neopentecostal familiar, para nos apresentar novas miradas e possibilidades de experiências transcendentes. Com a trans-decodificação de signos conservadores da religião que miram gênero e sexualidade e condenam corpos e modos de vida dissidentes, a artista celebra as travestilidades como guardiãs das fontes de vida e de abundância. Seu corpo travesti se entrega à sua própria ritualística religiosa no palco, onde clama por saúde, amor e liberdade para todas as travestis e convida o público a entrar no ritual com todo seu corpo e se somar à sua voz e movimento. Sua performance é um modo expandido e coletivo de arte que instaura um mundo onde todas as existências possam ser respeitadas e vividas em sua plenitude, mergulhadas em abundância, potência e glória.

Essa experiência vivida na 35ª Bienal certamente seguirá reverberando no meu corpo, mente e alma e impactará meu modo de ser, estar e fazer klínica. Convido você a experimentar coreografar o impossível e cartografar possibilidades comigo em 2024.

Abraços de elevar!


Colagem com as obras: Pink and Blue de Kapwani Kiwanga, A floresta de infinitos de Ayrson Heráclito e Tiganá Santana, Archivo de la Memoria Trans (AMT) de María Belén Correa e Claudia Pía Baudracco, Habitar el color de Carlos Bunga e How deep is the Ocean, de Ventura Profana.